O Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), unidade vinculada à Secretaria de Cultura do Estado (Secult-BA) concluiu dois inventários culturais que marcam um passo importante na preservação da memória e do patrimônio de povos indígenas, que fazem parte da história e da diversidade da Bahia. O trabalho, realizado ao longo do ano, documentou o patrimônio dos Guerém, da Aldeia de São Fidélis, em Valença, e dos Pataxó, que ocupam aldeias no Extremo Sul do estado. Foram seis meses de pesquisa de campo, entrevistas, registros audiovisuais e sistematização de informações históricas e etnográficas.
Ambos os trabalhos seguiram metodologias participativas recomendadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), priorizando o protagonismo indígena no processo. Lideranças, pesquisadores, estudantes e membros das aldeias atuaram diretamente no levantamento, garantindo que as referências culturais fossem identificadas, descritas e interpretadas a partir do olhar das próprias comunidades.
As ações foram viabilizadas por meio do Edital de Inventário de Conhecimento de Bens Culturais do Estado da Bahia, lançado pela Secult-BA no âmbito da Lei Paulo Gustavo, com apoio do Programa de Apoio a Projetos de Extensão da Universidade do Estado da Bahia (Proapex/Uneb).
A cultura Guerém em foco
Na Aldeia de São Fidélis, localizada no distrito Guerém, em Valença, o inventário identificou 20 bens culturais, entre celebrações, formas de expressão, objetos, saberes e lugares. Sete deles — maracá, jangada, Rio Piau, Lagoa Encantada, Igreja de São Fidélis, ritual Ntack Taru e Festa de São Fidélis — receberam fichas analíticas detalhadas, com contextualização histórica, simbólica e social.
O documento resgata séculos de história do povo Guerém, marcada por guerras coloniais, aldeamento forçado e pela extinção oficial do território em 1875, quando a presença indígena foi negada pelo Estado. Apesar disso, a identidade Guerém resistiu na memória, nos modos de vida e nas manifestações culturais da comunidade. O reconhecimento oficial pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), em 2014, foi um marco no processo de retomada étnica, que se fortaleceu a partir da criação do Coletivo Étnico-Cultural Aldeia Distrito Guerém, em 2018.
O inventário não se limitou ao registro documental: resultou também em um acervo audiovisual, um livro e um documentário, que funcionam como instrumentos de visibilidade e valorização. Mais do que um registro, o trabalho é parte de uma estratégia mais ampla de afirmação cultural e reivindicação territorial.
“Esse projeto se constituiu num ponto de convergência porque permitiu reconstituir, por meio da pesquisa histórica, parte da trajetória de formação da comunidade desde o século XVIII aos dias atuais, indicando todas as etapas de socialização, de territorialização, vividas pelos indígenas em diferentes contextos históricos, a partir de distintas políticas indigenistas, e as várias formas de resistência e luta que esses indígenas desenvolveram ao longo do tempo”, explica o historiador e professor da Uneb, Francisco Cancela.
A diversidade cultural Pataxó
Já o Inventário de Referências Culturais do Povo Pataxó – Pataxí Pakhêtxê percorreu 43 aldeias distribuídas em territórios como Barra Velha, Monte Pascoal, Coroa Vermelha, Comexatibá, Águas Belas, Aldeia Velha, Imbiriba e Mata Medonha. A pesquisa mapeou bens imateriais como saberes de medicina tradicional, técnicas artesanais com sementes, fibras e cipós, música e dança, com destaque para o ritual do awê, narrativas orais, festas religiosas e rituais sagrados.
Entre os bens materiais, foram registrados instrumentos musicais, utensílios de pesca e caça, arquitetura tradicional e locais sagrados e históricos, como o Monte Pascoal e a Reserva da Jaqueira. O trabalho também identificou iniciativas de revitalização da língua Patxohã e práticas de transmissão cultural para as novas gerações, como oficinas de cantigas de roda conduzidas por anciãs.
Assim como no caso Guerém, a construção do inventário Pataxó foi coletiva, contando com a participação ativa de comunicadores indígenas, professores, agentes de saúde, caciques, artesãos e guardiões de saberes. Cada etapa foi realizada com consentimento das lideranças, respeitando tempos e formas de organização comunitária.
Patrimônio e políticas públicas
Os inventários vão além do registro: funcionam como ferramentas para fortalecer a identidade, valorizar as culturas indígenas e embasar reivindicações políticas e territoriais. “Ao documentar e tornar públicos esses bens, o Ipac contribui para que os saberes e modos de vida dos Guerém e Pataxó sejam reconhecidos como parte do patrimônio cultural da Bahia e do Brasil, fortalecendo a política de salvaguarda do patrimônio cultural indígena no estado”, disse o diretor geral do órgão, Marcelo Lemos Filho.
Para a gerente de Patrimônio Imaterial do Ipac, Adriana Cerqueira, o mapeamento ultrapassa a dimensão meramente documental. “Se torna um gesto de reconhecimento e fortalecimento das narrativas próprias, em um contexto histórico marcado por tentativas de silenciamento e epistemicídio”.
As produções resultantes serão disponibilizadas ao público, garantindo acesso a informações e registros que fortalecem a preservação e a difusão dos saberes dos Guerém e Pataxó, assegurando que suas tradições e histórias continuem vivas e reconhecidas pelas próximas gerações.
Fonte: Ascom/Ipac